terça-feira, 27 de junho de 2023

Comida é afeto

 Psicanálise sem tabus, como o próprio nome diz, é um espaço para discutir as questões do desejo, do amor, da vida, sem receio de ferir ou contrariar o estabelecido socialmente. Se você acredita que a moral, a ética e a própria Psicanálise mudam, puxe sua cadeira imaginária e sinta-se em casa. 


Comida não é veneno. Tampouco, comida é apenas nutrientes. Comida é História. É memória. É afetividade.

Dizem que somos o que comemos. E o que comemos ajuda a contar a nossa história de vida. O que comemos, o que deixamos de comer mesmo gostando muito, o que passamos a comer mesmo não gostando tanto, o que ousamos experimentar, o que nos negamos a provar, o que escolhemos comer num dia triste ou quando estamos debilitados ( no corpo e/ou na alma) diz muito sobre nós, sobre os nossos afetos, sobre a nossa infância, sobre o que recebemos, sobre o que demos e o que perdemos. 

As comidas são metáforas. O que para um, pode ser apenas uma comida, para outro pode ser o abraço do avô, o beijo da avó, as brincadeiras da infância, a promessa de um dia melhor, a esperança de um novo amor, uma palavra amiga.

Cozinhar para alguém e comer junto ( mesmo que não seja a mesma comida) estreita laços, define melhor os afetos, diz um pouco sobre a nossa carência. Um pouco mais de molho sobre a carne, um pouco mais de queijo no macarrão, podem ser um pedido de socorro ou um "como estou feliz por estar aqui com você". 

Deixar o maior pedaço de torta ou o bife mais bonito para alguém pode significar um "eu te amo" com gosto de bolo caseiro ou leite morno antes de dormir num dia difícil.

Colocar um pouco de picante na comida pode significar um convite ao desejo. Convidar alguém para beber um vinho, um desejo de escancarar a alma. Dividir um pacote de pipoca no cinema é coisa que a gente faz com amigo. Pode ser mais romântico do que um beijo. Levar uma colherada ou uma garfada cheia de comida à boca de alguém pode representar um "estou aqui. Não tenha medo. Não deixarei que nada de mau te aconteça". 

Caldos e sopas pra alguns são comidas para doentes. Para mim, um caldo ou uma sopa é uma forma de acalento. Mesmo nos dias mais frios ( externamente e internamente) um bom prato de sopa parece me fazer capaz de aguentar tudo. Esquenta o corpo, anima a alma, mesmo que racionalmente falando haja poucos motivos para a esperança.

O aroma dos temperos sendo refogados na frigideira afugenta o cansaço de uma noite mal dormida, de um sonho abortado antes mesmo de poder ser amamentado em nosso peito. 

Com duas berinjelas na geladeira nem é preciso da carne para fazer um bom jantar. Um bom punhado de orégano, muito afeto e pronto! Todas as mágoas se diluem em um prato de macarrão. 

As tortas ( principalmente aquelas fofinhas com a massa preparada no liquidificador) são excelentes pedidas quando o tempo é curto e a fome é grande. 

Saladas e legumes no vapor sempre nos dão aquela sensação de estarmos fazendo a coisa certa depois de um dia de festa.

E como fazemos com os sentimentos, vamos equilibrando as comidas. Cada uma delas tem um porquê de estar em nossa vida. Umas nos fazem amar, lembrar. Outras nos fazem esquecer. Algumas são para celebrar. Outras, para curar. 

Não somente cozinhar e comer nos fazem bem. Falar sobre comida também é bom. A gente acaba falando da gente e de tudo o que nos toca quando falamos sobre comida.

Não, comida não é veneno. Tampouco comida é alucinógeno ou anestésico ou analgésico. Comida é a poesia do corpo.  



Sílvia Marques é psicanalista, professora, escritora e atriz. Apaixonada por dias de chuva, música alta, muito café, vinho barato, filmes e pessoas profundas, conversas insanas. 








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