quarta-feira, 21 de junho de 2023

Cultura do mártir X Cultura do hedonista: em busca da terceira via

 Psicanálise sem tabus, como o próprio nome diz, é um espaço para discutir as questões do desejo, do amor, da vida, sem receio de ferir ou contrariar o estabelecido socialmente. Se você acredita que a moral, a ética e a própria Psicanálise mudam, puxe sua cadeira imaginária e sinta-se em casa. 


Até meados do século XX, vivíamos sob o regime da Modernidade Sólida, termo cunhado pelo sociólogo polonês Bauman. Muita estabilidade. Pouca liberdade. Empregos vitalícios. Casamentos para todo o sempre, com ou sem amor, com ou sem amizade, com ou sem respeito. Tinha que se "amar" à base da porrada mesmo.

Na segunda metade, com o início da formação da Modernidade Líquida ou Pós-Modernidade, os vínculos se enfraqueceram porque passaram a ser questionados. Vida privada e vida pública começaram a se embolar. Muita liberdade. Quase nenhuma estabilidade. Anos e anos de estudo para conquistar subempregos ridículos. 

Na Modernidade Sólida ou simplesmente Modernidade, ser mártir era bonito. Todo estilo de vida pautado no auto sacrífico, na sustentação do desprazer e da infelicidade era visto como resiliência, força de caráter, idoneidade. Todo atalho que viesse a simplificar a vida era encarado como vicioso.

Já na Modernidade Líquida ou Pós-Modernidade, dizer bom dia sem vontade parece um estupro mental. Certas dinâmicas necessárias para o funcionamento da vida social são ignoradas em nome de um desejo brutal, que nada nem ninguém considera. Um desejo que sapateia e dança o tcha tcha tcha em cima da necessidade do outro. 

Uma frase muito usual é "Não sou obrigado". Sim, ninguém é ou deveria se sentir obrigado a se machucar para atender aos caprichos de outra pessoa. Mas somos ou deveríamos nos sentir obrigados sim a sermos minimamente gentis e educados. Deveríamos nos sentir obrigados a vivenciar a responsabilidade emocional, que nada tem a ver com manter relacionamentos infelizes. Tem a ver com saber respeitar e honrar quem nos ama ou quem nos amou, quem amamos um dia. Quem nem ao menos conhecemos, mas que é um ser humano com necessidades e desejos. 

Entre a cultura do mártir que opta pela infelicidade por ideologia e a cultura do hedonista que vive um desejo vazio, existe uma terceira via: a via do desejo livre do moralismo da Modernidade Sólida e repleto da generosidade que falta à Modernidade Líquida. 

Os modelos sociais tradicionais não funcionam mais. A tradição não dá conta de sustentar e respaldar o desejo. Tampouco é possível viver sem algum tipo de modelo. Chegamos a um impasse. Os medrosos chorarão tecendo odes ao passado: "No meu tempo era melhor!" Não, não era. O medo do novo nos dá a sensação de que o passado era bom.

Os frios sorrirão com deboche diante de qualquer vínculo, o que em nada ajuda. Só aumenta o gap entre as gerações. Só aumenta o gap entre o nosso ID e o nosso Superego. 

Os amorosos tentarão encontrar a terceira via, onde estabilidade, liberdade, desejo e responsabilidade possam conviver com criatividade e singularidade. 


Sílvia Marques é psicanalista, professora, escritora e atriz. Apaixonada por dias de chuva, música alta, muito café, vinho barato, filmes e pessoas profundas, conversas insanas. 






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