segunda-feira, 26 de junho de 2023

Estar analisado é estar desiludido. Como assim?

Psicanálise sem tabus, como o próprio nome diz, é um espaço para discutir as questões do desejo, do amor, da vida, sem receio de ferir ou contrariar o estabelecido socialmente. Se você acredita que a moral, a ética e a própria Psicanálise mudam, puxe sua cadeira imaginária e sinta-se em casa. 


Pelo senso comum, estar desiludido é estar  desapontado, decepcionado. É algo negativo, que gera sofrimento. 

Para a Psicanálise, o desejável seria estar sempre desiludido. Como assim? Estar desiludido é estar livre das ilusões. É estar apto a vivenciar o possível e não o ilusório. 

As ilusões são frágeis pois são falsas. Elas se baseiam nas nossas projeções. Nas promessas que fazemos e imputamos ao outro.

Quando estamos iludidos, vemos tudo através de uma névoa, que ignora o que não nos convém. Porém, a realidade é soberana e se impõe sobre nós, mesmo que tentemos nos esconder atrás das brumas netunianas ou da neurose.

A fantasia da completude do amor, a fantasia do amor fusão, do amor simbiótico, do amor que espera tudo do parceiro tem se mostrado um grande fiasco, pois passada a fase inicial da paixão, a realidade desponta como ela é. 

Ninguém completa ninguém, ninguém torna o outro um ser não faltante. Mas isso não significa dizer que o amor não existe. Existe sim e é muito bom se soubermos vivê-lo sem os véus de uma imaginação delirante. 

É na teia da cultura, é na interação social, que a inteligência ganha uma dimensão afetiva, capaz de afetar a si mesmo e ao outro. Nenhum intelectual se faz unicamente nas bibliotecas.

Nenhum relacionamento se faz no vácuo, em condições ideais de pressão e temperatura. Os relacionamentos também se desenvolvem, amadurecem e se transformam na teia da cultura. Não se preserva um amor mantendo-se longe de outras pessoas, mantendo o parceiro/a longe de outras pessoas. O parceiro/a deve ser sempre a referência principal, mas jamais a única fonte de saber e afetar.

O amor vivido em uma estufa , longe de qualquer contato com o mundo exterior tende a murchar e a viver sob o regime do coma existencial. Continua a respirar por meio de aparelhos ( o modelo social defendido pelo status quo), mas nada de novo surge. As mesmas memórias são replicadas em uma sequência desatualizada e fora de moda, como a dancinha anacrônica de uma Jane envelhecida em O que terá acontecido a Baby Jane? Cinéfilos entenderão! 

É delirante a ideia de acreditar que um amor será idêntico após 20, 30, 40 ou 50 anos após o seu início. Amor não é manteiga nem iogurte. Portanto, não tem data de validade. Pode durar a vida inteira ou não. Vai depender de n fatores. 

Quem não consegue aceitar que as pessoas mudam no decorrer dos anos e que elas deixam de ser capazes de cumprir as promessas feitas há décadas, está fadado a viver frustrado, pois não aceita amar o parceiro/a do jeito que ele/a é atualmente. Insiste em esperar por algo que foi prometido num outro tempo, antes de 507 transformações trazidas pelo movimento natural da vida. 

As experiências do passado servem de suporte para o afeto atual, porém, este mesmo suporte que sustenta não deve impedir que novos andares sejam erguidos rumo a momentos diferentes da relação.

Em suma, é preciso transformar para manter. Soou estranho? Talvez. Mas é assim que a bola continua rolando.





Sílvia Marques é psicanalista, professora, escritora e atriz. Apaixonada por dias de chuva, música alta, muito café, vinho barato, filmes e pessoas profundas, conversas insanas. 









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